A recolher lixo dos Oceanos desde 1981. Miguel Lacerda foi mergulhador profissional, campeão de pesca submarina, participou em expedições científicas e estudos de fauna marinha. Foi o primeiro cidadão nacional a mergulhar nas águas da península antártica em 2010, numa expedição a bordo de um navio quebra-gelo russo e conta já com mais de 20 travessias oceânicas, em circum-navegação ou a bordo de veleiros. Agora dedica-se apenas a navegar e recolher lixo oceânico. “Desde 1981 que chamo a atenção para o lixo dos Oceanos, chamaram-me fritado da cabeça, maluco, tonto, provavelmente os mesmos que hoje que dão palmadinhas nas costas quando me vêm chegar à praia com litros de lixo”, contou ao DN o “velhote”, já com 63 anos, recordando que na década de 80, quase foi preso em Cascais por trazer lixo do mar para a terra.

Segundo a ONU, 13 milhões de toneladas de plástico acabam nos oceanos todos os anos. Só a ilha de lixo no Pacífico tem 17 vezes o tamanho de Portugal. Há milhares de embarcações marinhas que a cada minuto habitam o Oceano e deixam um rasto de lixo. Os efeitos são desastrosos e não só para as espécies marinhas. Estima-se que cerca de 300 espécies marinhas estejam em risco de extinção.

Miguel antecipou estes cenários. Os avisos foram muitos, assim como as “orelhas moucas” dos responsáveis. Em 1984 numa expedição às Desertas, por causa dos lobos marinhos, chamou a atenção do Governo Regional da Madeira, Alberto João Jardim, para o fato de “as ilhas estarem cercadas de redes perdidas”. Ofereceu-se para as retirar desde que lhe arranjassem uma embarcação e um compressor para encher as garrafas de oxigénio. Mais uma vez chamaram-lhe “tonto”…

Hoje que o “mar vomita lixo por todo o lado”, as “pessoas acordaram para o problema”, mas olham para ele de forma errada, segundo o ambientalista. “Preocupam-se com as beatas e as palhinhas de plástico na praia, mas ignoram as ilhas de esferovite, as redes da pesca e os alcatruzes. Todos conseguem limpar a praia, está na moda e faz bem ao ambiente e à consciência, mas ninguém quer limpar falésias”, desabafou o mergulhador, lembrando que “é cansativo recolher lixo de uma falésia de 140 metros apenas acessível apenas através de trilhos difíceis e descendo cuidadosamente por pedras escorregadias, auxiliado, por vezes, por uma corda”. Além disso, “uma beata não pode ser contabilizada da mesma forma que uma rede de pesca de 300 Kg”.

Desde 2015 já recolheu mais de 90 mil litros de lixo no litoral Oeste Sintra Cascais, uma das zonas mais estratégicas da parte oriental do Atlântico Norte. Só este ano removeu quase 19 mil litros de lixo com ajuda de 171 voluntários. Isto só em 3 Km de costa: “Imagine quanto não haverá em toda a costa portuguesa e multiplique isso por milhares e terá o real valor do lixo oceânico.”

Segundo a Comissão Europeia, aproximadamente 80% do lixo marinho tem origem na terra. Números que diferem dos de Miguel Lacerda. Ele “chegou à conclusão 70% é lixo da pesca marinha mercante”. Boias de esferovite e redes que pesam 300 Kg são o grande problema. Por isso já aconselhou as autoridades marítimas e de conservação da natureza, bem como o PAN, para estudarem alternativas para os alcatruzes usados na pesca do polvo, de esferovite e plástico para barro, por exemplo. A maior parte das redes recuperada é oferecida aos pescadores, que as remendam e voltam a usar. Isso não impede que acabem de novo perdidas no mar à espera de serem de novo resgatadas. Por vezes são os pescadores a informá-lo da localização da rede perdida para que a recupere.

Já colocou os seus dados à disposição de entidades nacionais e internacionais, mas não vê vontade política de os aproveitar. Miguel Lacerda tornou-se “incómodo” a partir do momento em que começou a questionar as realidades reveladas pelas instituições nacionais e internacionais, como a União Europeia ou a ONU. E dá como exemplo o lema deste ano do Dia Mundial dos Oceanos – Inovação para um oceano sustentável. “Por muito que custe a muito gente ouvir isto não é possível falar da sustentabilidade do Oceano quando se desconhece ou ignora o verdadeiro problema. Anda muito gente a recolher lixo na praia e pensa que as beatas e os copos de plástico estão a matar o planeta, mas esquecem as ilhas de esferovite no Atlântico e Pacífico principalmente“, atirou o ativista ambiental de 63 anos. Segundo ele “há tanta gente preocupada com o plástico que se esquece da verdadeira praga, o esferovite na costa portuguesa”, disse o mergulhador que no ano passado criou a CASCAISEA, Associação Ambiental, formalizada em Cascais, para “trabalhar arduamente na defesa dos oceanos e dos seus ecossistemas”.

O copo de um bar na Flórida que deu à costa e o embuste da reciclagem

A pandemia levou um novo lixo urbano ao mar. “Na Baía de Cascais onde mergulho quase diariamente já se vê muitas luvas e máscaras” revelou o mergulhador, explicando que muito do lixo que chega à costa portuguesa vem dos EUA e Canadá. Uma vez apanhou um copo grande e cor-de-rosa, que tinha estampado: “Ana Maria Island Beach Cafe”. Era um bar de praia na Florida, bem no interior do Golfo do México e deve ter demorado meio ano a chegar à costa portuguesa.

Já o lixo português tanto pode ir parar à Madeira, como a Cabo Verde ou Caraíbas devido às correntes marítimas.

Ele já “pescou um pouco de tudo”. O mais estranho foram cadáveres de animais e fardos de droga. “Uma vez no Cabo Espichel eram tantos fardos de droga que abandonei o mar e fui à esquadra da GNR avisar e quase me metia numa enrascada. Perguntaram como é que sabia e eu expliquei que recolhia lixo e vi lá os fardos a boiar”. Não foi a única vez. Aconteceu-lhe algo parecido quando navegava nas Caraíbas.

Miguel não é de romantizar cenários e sabe que o lixo que recolhe “acaba num aterro qualquer”. Apesar de ele meter o plástico nos ecopontos, sabe que “a maior parte já não é reutilizável”. Segundo ele o tempo no mar retira-lhe propriedades essenciais à reciclagem e por isso desmistifica a ideia de que há empresas a utilizar lixo do mar para fazer solas de sapatos ou outras coisas: “É mentira.” Mas, agora há um projeto que lhe parece “interessante” e que promete transformar lixo oceânico em material para o chão.

“Ó Miguel tu andas a defender a vida marinha e os Oceanos e não te faz confusão andar a matar peixes?”

Apaixonado pelo mar desde criança viveu um episódio traumático. “Perdi o meu pai [José Ramalhete] aos dois anos e idade. Ele era mergulhador de competição e morreu durante o campeonato do mundo de caça submarina em 1959, na Sardenha, por isso o mergulho passou a ser um assunto proibido e sensível lá em casa. Eu era uma apaixonado pelo mar e comecei a mergulhar às escondidas aos nove anos“, contou ao DN. O fascínio pela vida marinha era tal que foi ao Aquário Vasco da Gama oferecer-se para trabalhar, mas como era menor (tinha 15 anos) não o poderem contratar. Em vez disso deram-lhe autorização para ir ao aquário quando quisesse. E ele foi “muitas vezes” até ser contratado.

Mais tarde com a morte da mãe tornou-se independente e começou a praticar mergulho em apneia e caça submarina. Era bom a apanhar peixe com o arpão debaixo de água e chegou a ser campeão nacional. Um título que não esconde, mas do qual hoje envergonha. Um dia os pescadores da zona de Cascais viraram-se para ele e perguntaram:“Ó Miguel, tu andas a defender a vida marinha e os Oceanos e não te faz confusão andar a matar peixes?” Esta frase ecoou na consciência de Miguel Lacerda com a mesma violência que costumava lançar o arpão às presas e levou-o a mudar radicalmente. Deixou a competição e começou a ser mais interventivo nas questões do mar. Ganhou consciência social e “o mergulho tornou-se uma arma”, que usa quase diariamente.

O mergulhador juntou-se a Vasco Ribeiro (Surf), Joana Schenker (bodyboard), Fernando Pimenta (canoagem) na campanha do Discovery – Num oceano ocupado por plásticos nem os humanos têm lugar. Os atletas foram desafiados a partilhar nas suas redes sociais uma atividade/emprego completamente diferente da que os seus seguidores estão habituados a ver.

O Dia Mundial dos Oceanos é celebrado anualmente a 8 de junho desde 5 de dezembro de 2008 quando foi proclamado na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) e pretende lembrar a importância dos oceanos na vida quotidiana e emissores de de grande parte do oxigénio que respiramos. Este ano tem como lema – Inovação para um oceano sustentável.

FONTE: Diário de Noticias